Doutrina: Manual de Direito das Famílias – Maria Berenice Gomes – 10ª ed. (2015)


FAMÍLIAS PLURAIS

Família constitucionalizada

Rastreando os fatos da vida, a Constituição viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de entidade familiar e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 § 3 .º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 § 4.0) , que passou a ser chamada de família monoparental.

Mas não só nesse limitado universo flagra-se a presença de uma família. Os tipos de entidades familiares explicitados são meramen te exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. Os avanços da jurisprudência fizeram o STJ declarar, com caráter vinculante e eficácia erga omnes, que as uniões homoafetivas são uma entidade familiar. A partir daí restou assegurado o acesso ao casamento.

Nos dias de hoje, o elemento distintivo da família , que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo.

Conceito atual de família

Para Paulo Lôbo, a família é sempre socioafetiva, em razão de ser um grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva. A afetividade , como categoria jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico , gerador de efeitos jurídicos.

 Agora – e pela primeira vez – a lei define a família atendendo a seu perfil contemporâneo. A Lei Maria da Penha ( L11.340/06) , que busca coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, identifica como família qualquer relação íntima de afeto (LMP 5 . º III) . Com isso , não mais se pode limitar o conceito de entidade familiar ao rol constitucional. Lei nova alargou seu conceito.

Luiz Felipe Nobre Braga traz o conceito de família potestativa, qual seja o direito de o sujeito livremente formar a família, que designa o ímpeto de aproximação existencial pelo afeto.

Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funçôes procriativas, econômicas, religiosas e políticas. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja , ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado.

Matrimônio

Foi a Lei do Divórcio, que, em 1977 , consagrou a dissolução do vínculo matrimonial, mudou o regime legal de bens para o da comunhão parcial e tornou facultativa a adoção do nome do marido . Ainda assim, até 1988, o casamento era a única forma admissível de formação da família. Foi quando entrou em vigor a atual Constituição Federal, que houve o reconhecimento de outras entidades familiares.

O Código Civil impõe requisitos para o reconhecimento da união estável, gera deveres e cria direitos aos conviventes. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens e garante ao sobrevivente direitos sucessórios. Aqui também pouco resta à vontade do par, sendo possível afirmar que a união estável transformou-se em um casamento por usucapião, ou seja, o decurso do tempo confere o estado de casado. A exaustiva regulamentação da união estável gera um dirigismo não querido pelos conviventes, uma vez que optaram por não casar. Eles escolheram seu próprio caminho e não desejam qualquer interferência. Como são relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização coacta.

Homoafetiva

As inúmeras decisões j udiciais atribuindo consequências jurídicas a essas relações levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecê-las como união estável, com iguais direitos e deveres. A partir desta decisão passou a justiça a admitir a conversão da união homoafetiva em casamento. De imediato o Superior Tribunal de Justiça admitiu a habilitação para o casamento diretamente junto ao Registro Civil, sem ser preciso antes formalizar a união para depois transformá-la em casamento. Até que o Conselho Nacional de  Justiça proibiu que seja negado acesso ao casamento e reconhecida a união homoafetiva como união estável.

Paralelas ou simultâneas

A determinação legal que impõe o dever de fidelidade no casamento, e o dever de lealdade na união estável, não consegue sobrepor-se a uma realidade histórica, fruto de uma sociedade patriarcal e muito machista. dois relacionamentos simultâneos: dividem-se entre duas casas , mantêm duas mulheres e têm filhos com ambas. É o que se chama de famílias paralelas. Quer se trate de um casamento e uma união estável, quer duas ou até mais uniões estáveis.

Não há como deixar de reconhecer a existência de união estável sempre que o relacionamento for público , contínuo, duradouro e com a finalidade de constituir família. O só fato de o homem ter uma família não quer dizer que não tem o desejo de constituir outra. Dito elemento de natureza subjetiva resta escancarado quando são comprovados longos anos de convívio. Ao depois , a fidelidade não é pressuposto para a configuração da união estável.

Poliafetiva

Mas quando o vínculo de convivência de mais de duas pessoas acontece sob o mesmo teto , não se chama de união paralela , mas de união poliafetiva, ou poliamor. Esta é outra realidade que existe e que todos procuram não ver. Por isso a escritura pública declaratória de união poliafetiva de um homem com duas mulheres repercutiu como uma bomba. Foi considerada por muitos como nula, inexistente, além de indecente, é claro. E acabou rotulada como verdadeira afronta à moral e aos bons costumes.

Monoparental

A Constituição , ao esgarçar o conceito de família, elencou como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes ( CF 226 § 4.0) . Tais entidades familiares receberam em sede doutrinária o nome de família monoparental, como forma de ressaltar a presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar.

Parental ou anaparental

A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família parental ou anaparental. A convivência sob o mesmo teto , durante longos anos, por exemplo , de duas irmãs que conjugam esforços para a formação do acervo patrimonial, constitui uma entidade familiar.

A solução que se aproxima ele um resultado justo é conceder à irmã , com quem a falecida convivia , a integralidade elo patrimônio , pois ela , em razão da parceria ele vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de vocação hereditária. Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica comunhão ele esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável.

Distingue família conjugal do que chama de família parental, quando as pessoas, movidas pelo desejo de terem filhos, escolhem alguém para fazerem uma parceria . Sem que mantenham qualquer vínculo de natureza amorosa ou sexual, concebem o filho que é registrado em nome de ambos. Estabelece-se uma paternidade compartilhada em que os dois exercem o poder familiar. Inclusive é comum existirem sites em que homens e mulheres procuramalguém para compartilhar a paternidade e a maternidade.

Composta, pluriparental ou mosaico

A cada dia surgem novas expressões – composta, mosaico e binuclear -, na tentativa ele identificar as famílias que resultam da pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo divórcio, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e elas desuniões.

No entanto, nestas novas famílias , a tendência é considerar, ainda, como monoparental o vínculo elo genitor com o seu filho, até porque o novo casamento dos pais não importa em restrições aos direitos e deveres com relação aos filhos ( CC 1 . 5 79 parágrafo único).

Natural, extensa ou ampliada

O conceito de família natural é trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. A expressão família natural está ligada à ideia de família biológica , na sua expressão nuclear. Nem a Constituição Federal (art. 227) , ao garantir o direito à convivência familiar, e nem o E CA (art. 1 9 ) , ao assegurar a criança e adolescente o direito de ser criado e educado no seio de sua família, estão se referindo à família biológica. Ainda assim há uma verdadeira sacralização da família biológica, quando a nuclear é chamada de família extensa ou ampliada (ECA 25 parágrafo único: aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, farmada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade) . Parece que ninguém percebe que este conceito dispõe de um pressuposto além do elo consanguíneo. A lei exige que já exista um vínculo de convivência, afinidade e afetividade para se reconhecer algum parente como família extensa.

Eudemonista

Para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo surgiu um novo nome: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros.